Os apps de relacionamento e as relações invertidas

Luciana Annunziata
4 min readJan 15, 2018

Foi assim.

4. Eles se conheceram, se gostaram e transaram. Depois conversaram e perceberam o quanto eram diferentes, mas acharam que podia ser bacana mesmo assim. Então passearam. Apesar dos meros 1200m de distância, não era fácil encontrar uma agenda comum, mas como a transa tinha sido boa, insistiram.

3. Os encontros eram… bons, mas não como o primeiro. Ele pensou que o fator surpresa era sempre um diferencial; ela pensou que ele não era bem aquilo que ela tinha imaginado.

2. Despediram-se por what’s up numa segunda-feira porque ela ia viajar a trabalho. Na volta, as mensagens minguaram e ela concluiu que ele ainda estava no aplicativo e com certeza tinha achado alguém. Ele não tinha achado ninguém e concluiu que ela não estava a fim.

1. Despediram-se de vez numa quarta-feira. Chovia cântaros no horário em que teria sido o último encontro.

  1. Um dia ele se sentiu calado demais. Caminhou pela casa e deu um alô para o cachorro, que se meteu entre suas pernas pedindo carinho. Não era suficiente. Lembrou dela e teve uma certa vergonha, afinal, fazia meses que não se falavam. Abriu a foto dela no what’s up, mas não ligou.

2. Quando a encontrou por acaso na padaria, sentiu o sorriso nascendo no peito (só 1200m de distância, logo: a mesma padaria). Ela não era tudo aquilo, mas ele sentia alguma coisa. Não precisou pedir o telefone.

3. Começaram a sair na semana seguinte. Um cinema. Escolheu algo de que ela fosse gostar e observou-a de longe enquanto ela comprava o café. Deixa que dessa vez eu pago. Ela voltou com o café e pediu para ver o que ele estava lendo no celular. Era um artigo sobre como as pessoas que têm cachorros vivem mais tempo, algo de fundo científico, mas no fundo muito emocional.

4. Ele pensou que era isso o que faltava ao algoritmo que os havia apresentado: era muito científico (acusava 1200m e 7 amigos em comum) mas tinham se passado seis meses até aquele dia, quando ele abriu a porta com a chave meio encalhada e ela riu. Você ainda não consertou a porta… Pois é.

5. Outro dia ele me disse que achava que estava namorando com ela. Eu dei risada porque parecia tão fora de época isso, mas vi nos olhos dele que estava feliz, talvez mais feliz do que quando saiu com a Fernanda, a Cíntia ou a Márcia (a mais gostosa de todas, mas sem condições aquela mulher). Se eles casarem, ou algo assim, quero ser a madrinha e vou fazer o bolo de chocolate que ele tanto gosta.

Funciona assim.

As pessoas se conhecem no app, se encontram, e em caso de química, transam. Mas e aí? A intimidade é zero, então há um desequilíbrio entre o corpo, a mente e o coração. O corpo manda vai! A mente diz aproveita e o coração fica em dúvida. E como sempre, o coração acaba mandando. Então a relação retrocede. Os dois vão ficando mais distantes, porque é pela distância que se estuda o outro, e às vezes é preciso ainda mais distância, porque além de ver o outro é preciso ver a si mesmo na relação. Será que eu me vejo com ela, com ele? Só depois disso fica claro o que pode ou não acontecer.

É como se os relacionamentos começassem ao contrário nos apps: casa (ou cama), noiva (preciso pensar ainda), namora (porque é legal, mas não o tempo todo), e às vezes termina. Ou volta a flertar devagarinho, num vai e vem infinito de mensagens de texto onde um lê e relê o outro em busca de algum tipo de confirmação.

Quando não havia esses apps (e ainda hoje nas relações tecnologicamente desintermediadas), a gente encontrava e flertava, lendo e relendo o outro numa festa, num show ou num café. Depois pedia o telefone e conversava (por voz, acreditam?!). Depois um cinema e aí, perguntar o que o outro andou lendo. Então ouvir uma história de vida, mergulhar no outro aos poucos, até que um dia, depois de fazer funcionar alguma chave encalhada: a transa.

Algumas pessoas chegavam a casar, mas isso não é o mais importante. O importante é que a intimidade ia sendo conquistada. E dizer isso não é saudosismo. Os apps são utilíssimos num mundo em que as pessoas são ocupadas demais para sair e flertar, ou têm preguiça, ou simplesmente se acostumaram a "googar" em busca de tudo. Mas o coração não é um aplicativo, e as relações se constroem assim: passo a passo, de traz (de um lugar protegido) para frente (diante do outro, numa nudez absoluta). Talvez isso a tecnologia nunca possa mudar.

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Luciana Annunziata

Escritora de ficção, eco-feminista, buscadora, mãe, estudante de yoga.