O beijo em tempos de coronavírus

Luciana Annunziata
3 min readMar 12, 2020

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Tosse?

Não.

Viagem internacional?

Não.

Dentes escovados, mãos bem lavadas, água e sabão até os cotovelos, as unhas; sim, sim, sim, SIM!

Nossos lábios colados ao som dos trombones de vara, as clarinetas, nenhuma pergunta entre o asfalto e o céu. Pernaltas cantam e alguns tambores dobram a última esquina do bloco enquanto a poluição decrescente da China é transmitida via satélite, deixando ver finalmente quem são os milhões de incógnitos que produzem tudo nesse mundo: meias, chips, embalagens de salgadinhos, a nova versão do Nintendo, as tiaras, as torradeiras, as calças jeans, a ilusão brilhante dos balões vendidos nas ruas de São Paulo e suas minúsculas luzes de LED, até as hastes dos balões, elas vêm de muito longe, trazidas por navios e aviões, carbono e petróleo.

Os chineses também beijam, você diz. Não mais, eu retruco logo antes da tua boca calar a minha voz. Estão todos de máscara, penso, e até os astronautas da estação espacial podem ver, por milhonésimas aproximações, os beijos interrompidos dos chineses, dos italianos, dos alemães dizendo danke e se afastando, dos nova-iorquinos em seus casacos da moda atravessando as ruas ao avistar um estranho com tosse; todos se afastam como as nuvens cinzas sobre Wuhan, depois Xenghu, Xian, Xangai, e aqui nós dois atravessados, o teu centro contra o meu; é Carnaval e as pessoas dançam apesar de todo vírus, de toda sorte de morte; beijamos aos golpes, aos socos, às balas de borracha, agarrados à nossa própria natureza ou à natureza dos índios que já não temos e seus elixires mágicos descendo por nossas gargantas.

Lábios em X. Beijamos ao que resta.

Passam por nós as alfaias, as flores nos cabelos das moças, o chapéu de mágico, uma bruxa de rosto manchado, o corvo de papel no ombro do palhaço, a caveira do dia dos mortos; passam até ficar difícil demais desviar de nós dois, já enredados à corda que separava os músicos do público, arrastando tudo. A plateia, corpos colados, agora quer o beijo, quer o vírus, quer a pausa, quer o breque; a plateia desejante quer as balas, os chips, as bonecas Barbie, os utensílios inúteis de cozinha, tudo o que devorava os trabalhadores de Xian antes do hospital ser construído em dez dias (aquele hiato quando tudo parecia estar apenas um pouco torto).

Os pássaros, único movimento nos céus, levam a notícia dessa orgia até Xenghu, e no caminho enxergam melhor do que os satélites o príncipe saudita enlouquecido de outras doenças que atira ao mundo uma ordem e gargalha bêbado diante da gaiola vazia onde antes vivia um pássaro raro.

As pombas doentes de Milão suspiram ao verem as escolas fechadas de Milão.

Os operadores da bolsa respiram fundo quando as operações da bolsa são suspensas.

Tudo para enquanto os beijos e os vírus proliferam: é preciso entender a vida que já não temos, nossos fracassos, nosso tempo tão escasso agora alargado porque já não circulam os ônibus, os teatros estão vazios, os navios atracados já não carregam litros de óleo de cozinha, nem turistas, nem o petróleo barato. Nos parques, as rodas gigantes estão estacionadas e, sem a trilha sonora dos risos, um casal de urubus no assento mais alto aguarda a tua boca e a minha, as linhas cruzadas, as encruzilhadas onde nos metemos todos.

Dentro dos apartamentos e das casas trancadas, as famílias assistem online a quarentena dos povos. Na TV, em busca de alguma imagem que encerre bem o noticiário, o mundo nos testemunha em pleno risco, em pleno gozo, em tempo real via drone:

Me beija, amor, antes que seja tarde.

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Luciana Annunziata

Escritora de ficção, eco-feminista, buscadora, mãe, estudante de yoga.